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Entre as bancadas dos laboratórios e as inovações de mercado: o hiato brasileiro

Por: Claudio Castanheira, Caio Nascimento

28 de Fevereiro de 2024

Durante o Encontro Anual do Fórum Econômico Mundial em Davos em janeiro de 2024, foi publicado o estudo The Future of Growth[1], no qual são analisadas as características do crescimento de 107 países, dentre eles o Brasil. Quase simultaneamente, o governo federal brasileiro divulgou seu plano de incentivo à reindustrialização do país, chamado “Nova Indústria Brasil”, que prevê disponibilização de R$ 300 bilhões para investimentos no fortalecimento da indústria local[2]. Aproveitando a concomitância da publicação de ambos os documentos, parece ser uma boa oportunidade para refletir sobre caminhos que podem favorecer o progresso da indústria brasileira através da geração e utilização de novas tecnologias, o que induz aumentos em produtividade e competitividade do produto nacional.

O estudo publicado em Davos é metodologicamente novo, mas o cenário final não: o Brasil teve, até o momento, um perfil de crescimento econômico pouco associado à inovação, com uma capacidade inovadora abaixo da média global. O estudo traça uma comparação entre as trajetórias de crescimento de países de renda alta, média e baixa sob a óptica de quatro pilares básicos: Capacidade Inovadora, Inclusão Social, Sustentabilidade e Resiliência.

Os resultados, de modo geral, indicam que a trajetória de crescimento de países de alta renda é caracterizada por altos níveis de Capacidade Inovadora, Inclusão Social e Resiliência, porém, o estudo mostra haver espaço para melhoria em aspectos de sustentabilidade. Em contrapartida, as trajetórias de crescimento do Brasil e de outros países de renda média são caracterizadas por escores inferiores à média global nos pilares de Capacidade Inovadora, Inclusão e Resiliência, com desempenho superior apenas no aspecto Sustentabilidade.

O relatório indica que o perfil de crescimento brasileiro se compara ao de países como Benim, Costa do Marfim, Gana, Índia, Jordânia, Quênia, Ruanda, Marrocos e Tanzânia. Especificamente no pilar de Capacidade Inovadora, o Brasil alcançou aproximadamente 42 pontos, ficando atrás de países como Malásia (52), Indonésia (45) e Tailândia (48), todos também considerados de renda média-alta. Alguns países de renda média-baixa, como Vietnã (44) e Ucrânia (46), também superam o Brasil em termos de potencial de inovação.

Dentre os diversos indicadores que compõem o pilar de Capacidade Inovadora, vale comentar especialmente os que avaliam (i) volume de investimento em Pesquisa e Desenvolvimento (P&D) como percentual do PIB, (ii) impacto de publicações científicas e (iii) depósitos de pedidos de patente. Conforme sugere o estudo, o investimento em P&D leva a uma sólida oferta de conhecimento e tecnologia. O consequente avanço do conhecimento, leva a publicações científicas de qualidade, o que contribui para a prosperidade de uma economia ao disponibilizar novas tecnologias aos diversos segmentos econômicos. Tais avanços acabam gerando novas tecnologias que propiciam vantagens econômicas a produtos e serviços, o que tipicamente resulta no interesse de seus inventores em proteger os direitos pelas invenções, representados por depósitos de pedidos de patente.

Todavia, no Brasil, este ciclo virtuoso não se fecha, aparentemente por conta do já sabido hiato entre a produção de conhecimento científico e a transformação deste em soluções tecnológicas[3]. O estudo mostra que o valor equivalente a 1,2% do PIB que o Brasil investe em atividades de P&D é superior (ligeiramente) à média global e significativamente acima da média dos países de mesmo nível de renda per capta. O esforço brasileiro em P&D é notável, apesar de ainda inferior ao investimento de países de alta renda, como, por exemplo, os EUA (3,4%), Suíça (3,2%), Alemanha (3,1%), Dinamarca (3,0%) e França (2,3%).

Ao mesmo tempo, o estudo constata que o país produz pesquisa de altíssima qualidade, alcançando um escore de 57,8, perante os 33,4 pontos da média global e os 23,1 pontos da média dos países do mesmo nível de renda. O ciclo virtuoso não se fecha devido à pouca capacidade de transformar o conhecimento produzido, em tecnologias que são lançadas no mercado, conforme ilustrado pelo indicador de depósitos de pedido de patente, apenas 2,4 pontos, que está abaixo da média global, 6,2 pontos, e de países como Turquia (2,9), Austrália (7,5) e Índia (12,4).

Tal indicador é definido no estudo pelo número de invenções que tiveram seus direitos comerciais requeridos através de patentes em ao menos duas das cinco maiores economias baseadas em tecnologia no mundo (e onde estão os 5 maiores escritórios de patentes – os IP5[4]). No período avaliado pelo estudo, os titulares brasileiros solicitaram proteção para apenas 480 tecnologias nestes IP5, enquanto depositantes da Índia fizeram o mesmo para 2.485 invenções, da Espanha para 1.473, do Canadá para 4.102 e da Itália para 4.711.

É evidente que solicitar patentes em outras jurisdições é (ou deveria ser) uma decisão de estratégia de negócios. Empresas que investem em inovação e que acabam tendo em mãos tecnologias inovadoras tendem a decidir protegê-las em grandes mercados potencialmente consumidores destas tecnologias para garantir direitos sobre o seu uso e retorno para os investimentos feitos. Assim, o cenário descrito para o Brasil pode ser reflexo de baixo grau de inventividade ou de como o empresário nacional percebe a oportunidade que se cria ao internacionalizar a proteção dos direitos sobre a tecnologia desenvolvida.

Considerando apenas a perspectiva da inovação tecnológica, o processo de transição para uma trajetória de crescimento econômico associada a uma maior Capacidade Inovativa – nos termos do Fórum Econômico Mundial – não passa pelo simples aumento do depósito de pedidos de patente. Mas ele talvez seja um dos mais importantes, dado que é nesse indicador que o País menos pontua, entre os mais de 70 indicadores utilizados no estudo[5].

Essa transição passa também pela capacitação da indústria nacional no uso estratégico do sistema internacional de patentes. O sistema permite absorção do conhecimento técnico-científico disponível globalmente, evitando-se investir para “reinventar a roda”, e levando a uma aceleração na velocidade de produção de invenções incrementais – principal objetivo do sistema. Além da já citada baixa internacionalização dos direitos sobre as invenções geradas no Brasil, o uso do sistema como um todo por empresas e entidades brasileira é baixo. O total de pedidos de patente depositados no Brasil por entidades nacionais mantem-se desde 2016 em torno de 5.000. O que representa algo como 20% do total de pedidos de patente de invenção apresentados ao INPI (Fig. 1).

Figura 1: número de depósitos de pedidos de patente apresentados ao INPI por interessados residentes e não residentes no país. Fonte: análise própria a partir de dados do INPI[6].

Em contrapartida, no mesmo período, cerca de 17 milhões de novas tecnologias (representadas por famílias de patentes) foram divulgadas sob a forma de famílias de patentes, numa tendência anual crescente. Uma pequena fração destas tecnologias busca proteção patentária no Brasil, em torno de 0,5%, e apresenta tendência de queda desde 2016 (Fig. 2).

Figura 2: número de novas tecnologias descritas em famílias de patentes entre 2016 e 2020, no mundo, e percentual destas que buscaram proteção no Brasil. Fonte: análise própria a partir de dados do PatBase.

Ainda que o crescimento recente do número de pedidos de patente no mundo esteja fortemente relacionado a depósitos realizados na China e que a maioria absoluta de tais interessados não busca proteção patentária em outras jurisdições, os depositantes de mais de 90% das tecnologias potencialmente mais relevantes do mundo – aquelas que contam com pedidos de patente em ao menos duas jurisdições IP5 – também não perseguem proteção no Brasil. Da amostra de aproximadamente 17 milhões de tecnologias (i.e. famílias de patentes), pouco mais de 1 milhão conta com pedidos de patente em ao menos duas jurisdições IP5. Destas, nem 10% inclui um pedido de patente no Brasil (Fig. 3). Isto mostra o baixo interesse dos detentores destas invenções em licenciar ou usar de alguma forma estas tecnologias no País. O que pode ser um indicativo de agravamento da tendencia de desindustrialização.

Figura 3: número de tecnologias que buscaram proteção patentária em ao menos duas das cinco principais jurisdições – IP5 – e no Brasil. Fonte: análise própria a partir de dados do PatBase.

Dentre os segmentos tecnológicos mais representados entre as famílias de patentes IP5, estão ao menos seis (destacados na figura 4) explicitamente associados com as metas da agora vigente política industrial brasileira, descritas no programa Nova Indústria Brasil[7]. Em linha com as missões temáticas da nova política industrial, o conjunto de famílias de patentes IP5 inclui mais de 200 mil famílias de patentes em Tecnologias de Computação, mais de 100 mil em Comunicação Digital, Semicondutores, Transporte e Tecnologias médicas, bem como cerca de 80 mil em Telecomunicações (Fig. 4).

Figura 4: grupos tecnológicos que reúnem maiores números de famílias de patentes com pedidos de patente em ao menos duas das regiões IP5 (EUA, Europa, Japão, Coreia do Sul e China). Fonte: análise própria a partir de dados do PatBase.

A nova política industrial do governo federal visa à reindustrialização nacional, com foco especial em temas como: agroindústria, indústrias relacionadas a produtos para a saúde, infraestrutura, transformação digital na indústria, bioeconomia e transição energética, e tecnologias para soberania e defesa nacional. Está prevista a disponibilização de recursos reembolsáveis e não reembolsáveis para projetos destinados a superar desafios como aumento de produtividade no campo e na indústria, redução da dependência de importações (particularmente no setor de saúde) e promoção de inovações disruptivas.

O sucesso deste novo esforço de capacitação tecnológica local passa pela absorção do conhecimento do que agora é estado da arte, seja como direcionador de esforços de P&D, seja como foco de iniciativas para transferência de tecnologia.

A seguir, são ilustradas algumas tecnologias altamente relevantes para seus respectivos campos (i.e. famílias de patentes mais citadas por outras patentes), destacados acima, e que representam conceitos alinhados aos desafios explicitados no programa Nova Indústria Brasil.

Por exemplo, no segmento “Tecnologias da computação” há soluções como aquela que revelou a tecnologia Internet das Coisas (documento WO18125989), cuja família de patentes já foi citada por terceiros mais de 1.400 vezes. A invenção trata do sistema no qual inúmeros dispositivos estão conectados em rede com a finalidade de adquirir dados e tomar ações com base nestes. Os equipamentos podem ser autônomos ou semiautônomos, configurados para executar uma ou mais funções (Fig. 5). A tecnologia inclui, ainda, protocolos de segurança para as redes de IoT utilizando Blockchains.

O conceito de IoT está diretamente associado ao tema de Indústria 4.0, que é área prioritária da Missão 4 do programa Nova Indústria Brasil – “Transformação digital da indústria para ampliar a produtividade”. Entre as ações previstas está o uso de recursos não reembolsáveis para financiar smart factories, que utilizam, entre outras tecnologias, dispositivos conectados em rede IoT.

Figura 5: ilustração de uma rede de computação em nuvem conectada a diversos dispositivos de IoT. Fonte: figura 3 do documento WO18125989.

O grupo de tecnologias englobadas pelo tema de Transportes abarca uma série de soluções em mobilidade, inclusive na modalidade elétrica, que é área prioritária da Meta 3 da política industrial brasileira atualmente vigente.  Uma ilustração do vasto conjunto de tecnologias deste tema é aquela coberta pela família de patentes representada pelo documento US9882253B1.

A invenção é um conjunto de barramentos e placas refrigerados para a montagem de células de bateria em módulos de alimentação para veículos híbridos ou integralmente elétricos. Trate-se de uma solução à demanda por dispositivos que garantam conexões elétricas confiáveis entre células de bateria individuais, que resfriem eficientemente a bateria e que tornem mais custo-efetivo o processo de fabricação de montagem de baterias individuais e modulares (Fig. 6).

Figura 6: ilustração de um veículo elétrico contendo um conjunto de baterias conforme a invenção. Fonte: figura 1 do documento US9882253B1.

Finalmente, vale ilustrar o grupo de tecnologias médicas, que engloba inúmeras famílias de patentes associadas a medicamentos, vacinas e dispositivos médicos, todos alvos da nova política industrial. Neste segmento tecnológico estão, por exemplo, os medicamentos biológicos (e.g. anticorpos monoclonais), tipo de produto que tem peso desproporcional nas despesas do Sistema Único de Saúde (SUS).

Mais recentemente, as chamadas terapias avançadas (e.g. terapias gênicas e células CAR-T) ganharam a atenção pública por conta dos custos ainda mais elevados. Neste conjunto de terapias se enquadra por exemplo, a invenção da família de patentes que engloba o documento WO17172981, citada por terceiros quase 200 vezes. A invenção se enquadra no conjunto das terapias baseadas em células CAR-T e fornece um mecanismo reconhecimento e ataque a células tumorais mais eficaz.

Em suma, quando analisados de maneira agregada, documentos de patentes representam uma vasta fonte de informação tecnológica que pode ser consultada, por exemplo, para identificar tendências técnicas bem como os principais players no desenvolvimento tecnológico e mercados potencialmente mais relevantes. Se apreciados de modo individual representam um caminho para a “evolução da roda” em vez de sua reinvenção.

Informações patentárias podem (e devem) apoiar o norteamento de projetos de P&D que serão estimulados e apoiados pelos recursos derivados da nova política industrial brasileira. Apesar do relevante volume de investimentos esperado, é imprescindível alocar o capital disponível de maneira custo-efetiva. O uso adequado do sistema de patentes, seja como fonte de inteligência ou como instrumento de proteção a vantagens competitivas, é um dos fatores-chave para que a indústria brasileira alcance o status de inovadora na atual economia do conhecimento.


[1] https://www.weforum.org/publications/the-future-of-growth-report/

[2] https://www.gov.br/mdic/pt-br/assuntos/noticias/2024/janeiro/brasil-ganha-nova-politica-industrial-com-metas-e-acoes-para-o-desenvolvimento-ate-2033

[3] Vide: Cross D, Thomson S, Sinclair A. Research in Brazil: a report for CAPES by Clarivate Analytics. Disponível em: <https://www.gov.br/capes/pt-br/centrais-de-conteudo/17012018-capes-incitesreport-final-pdf>. Data de acesso: 25/01/2024.

[4] As famílias de patentes IP5 são aquelas que compreendem depósitos de pedidos de patente em pelo menos dois dos cinco maiores escritórios de patentes do mundo, quais sejam: o Escritório Europeu de Patentes (EPO), o Escritório de Patentes do Japão (JPO), o Escritório Coreano de Propriedade Intelectual (KIPO), o Escritório de Marcas e Patentes dos EUA (USPTO) e a Administração Nacional de Propriedade Intelectual da República Popular da China (NIPA).

[5] Em outros 3 indicadores o Brasil ficou abaixo dos 2,4 pontos: pedidos de “patentes verdes” (1,6 pontos); polarização social (0 pontos) e desigualdade de riqueza (0 pontos).

[6] Acessado em: <https://www.gov.br/inpi/pt-br/central-de-conteudo/estatisticas/estatisticas>. Data de acesso: 04/02/2023.

[7] https://www.gov.br/mdic/pt-br/composicao/se/cndi/arquivos/missoes-politica-industrial.pdf.

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